Publicações - 21/09/20
Ruth Ginsburg e procedimentos criminais norte-americanos
No dia 18 de setembro de 2020, a comunidade jurídica mundial perdeu Ruth Bader Ginsburg, uma das mais notáveis advogadas e juízas dos últimos tempos. Por volta dos anos 60, Municípios e Estados norte-americanos possuíam leis a estabelecerem distinções discriminatórias contra mulheres e afrodescendentes. Thurgood Marshall foi o grande advogado na defesa dos direitos de afrodescendentes, enquanto Ginsburg seguiu sua carreira pela defesa dos direitos das mulheres, na academia, como advogada, e depois como juíza.
No mês de seu falecimento, vale a pena passarmos pelos casos que ela sustentou, como advogada e como juíza na Suprema Corte. Esses casos, por vezes, buscavam a defesa de homens que, curiosamente, argumentava-se serem prejudicados justamente por regras desiguais no tratamento de homens e mulheres.
Em Durren v. Missiouri (1979), por exemplo, o réu Billy Durren foi acusado de homicídio e contestou a formação do painel de jurados, composto apenas por homens, o que violaria seu direito de um júri cuja composição fosse razoavelmente representado pelos diversos membros da comunidade (o termo utilizado foi cross-sectional selection, que poderia ser traduzido para transversal), em alegada violação da 6ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos.
Nesse Estado norte-americano, os jurados eram selecionados a partir da lista de eleitores. As setenta mil pessoas selecionadas anualmente dessa lista recebiam uma carta com perguntas para determinar sua elegibilidade para o júri. O questionário possuía duas perguntas que foram inquinadas, a primeira pergunta pedia para a pessoa indicar seu sexo; a segunda pergunta dizia que, se a pessoa fosse mulher, e não quisesse ser jurada, ela poderia ir direto para o fim do formulário e abdicar de ser jurada. Além disso, as intimações para jurados tinham a indicação de que, se o jurado fosse mulher e não quisesse ir, ela poderia simplesmente comunicar o cartório judicial e informar sua ausência. Se ela não comparecesse, já se entendia que ela não queria ser jurada. Essas perguntas do formulário e essa prática consolidada favoreceriam a falta de participação feminina no júri, mesmo sem qualquer justificativa para tanto, sendo a causa da baixa representatividade feminina no corpo de jurados (menor que 15%).
A Supreme Corte Estadual entendeu que o direito a um júri composto por jurados de origem transversal na sociedade estava intacto apesar dessas regras e práticas consolidadas. Em sua sustentação na Suprema Corte Federal, Ginsburg alegou que essas regras e práticas apenas estavam vigentes por refletirem um certo modo de se ver as mulheres como menos cidadãs do que homens, e que portanto não deveriam participar de júris. Ao invés de serem um privilégio para mulheres, eram na verdade um afastamento das mulheres da participação na administração da justiça. A Corte decidiu em favor de Durren, aplicando o precedente anterior que versava sobre matéria similar (Taylor v. Lousiana).
Como juíza, até 2008, Ginsburg havia analisado por volta de 337 casos de direito penal e direito processual penal[1]. Em 198 deles (votos escritos por ela e votos que ela aderiu a maioria), ela decidiu a favor da defesa. Um exemplo a ser citado é o caso Greenlaw v. United States (2008), no qual ela escreveu a decisão pela maioria e votou pela inconstitucionalidade da decisão da Corte de Apelações do 8º Circuito frente ao sistema adversarial norte-americano.
Em resumo, Michal Greenlaw foi condenado por diversos crimes e o juiz de primeiro grau entendeu que o mínimo mandatório de pena não deveria ser aplicado para parte dos crimes da condenação, estabelecendo uma pena menor do que esse mínimo mandatório, o que seria um erro na aplicação da lei então vigente.
Greenlaw recorreu para que sua pena global fosse diminuída. A Corte de Apelação negou sua apelação, mas entendeu por cassar a decisão e determinar ao juiz de primeiro grau que aumentasse a pena de acordo com o mínimo mandatório. Na Suprema Corte, a decisão foi no sentido de que a possibilidade, de ofício, de reversão de erros claros na aplicação da lei pelas Cortes de Apelação não significava derrogação da necessidade de as partes ao menos interporem um apelo para a mudança do julgado.
O primeiro caso citado é prova viva da força argumentativa e tenacidade com que Ruth Ginsburg atuava em seus processos. O segundo caso é exemplo da busca pela perfeição com que ela redigia seus votos. No mês de seu falecimento, a lembrança de ao menos dois casos em que ela atuou, como advogada e juíza, é feita por nós em homenagem à sua atuação para o mundo do Direito, que sem dúvidas perde a vivacidade de seu exemplo profissional.
[1] Justice Ginsburg’s Gradualism in Criminal Procedure. Cristopher Slobogin. Ohio State Law Journal. 70:4.