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Publicações - 24/08/20

Responsabilidade penal pelo inadimplemento de tributos no contexto da pandemia de COVID-19

Os impactos econômicos ocasionados pela pandemia de COVID-19 no Brasil já são notórios. Pesquisa recente do IBGE[1], com resultados divulgados em 16 de julho, aponta que 522.000 empresas já fecharam a porta desde o início da pandemia no país. A mesma pesquisa, atualizada em 18 de agosto, aponta ainda que 46,8% das empresas em funcionamento reportaram que a pandemia teve um efeito negativo sobre a empresa, o que se exemplifica pelo fato de que 47,3% das empresas em funcionamento indicarem dificuldade para realizar pagamentos de rotina.

O quadro brasileiro no futuro não é dos melhores. A pandemia está longe de seu fim, enquanto que os governos federal e estaduais pouco fazem para criar canais de auxílios às empresas ainda em funcionamento, o que gera enorme insegurança para os empresários brasileiros. Nesse sentido, empresários de todo o país cada vez mais terão que lidar com o cenário do inadimplemento.

O inadimplemento, conquanto se tratar de fenômeno comum e corriqueiro nas relações obrigacionais, pode ensejar ilícitos penais, principalmente quando tal fenômeno é observado no contexto das relações tributárias.

Nesse sentido, de maneira muito evidente e natural, a crise econômica provocada pela COVID-19 traz à mesa a discussão sobre se o não pagamento das contribuições recolhidas dos contribuintes, ou de tributos que tenham sido descontados ou cobrados, conduzirá a lavratura de autos de infração e imposição de multa e posterior remessas de representações fiscais para fins penais ao Ministério Público Federal e/ou Estadual.

Os crimes tributários encontram-se previstos em dois ordenamentos na legislação brasileira: (i) Lei n. 8.137/1990, que prevê crimes contra a ordem tributária, econômica contra as relações de consumo; e, (ii) Código Penal, diploma em que se encontram previstos três delitos sobre a matéria.

Na Lei n. 8.137/1990, os crimes tributários encontram-se previstos nos artigos 1º e 2º. No artigo 1º, encontram-se os crimes materiais – aqueles crimes cuja consumação depende do resultado –; no artigo 2º, encontram-se os crimes de mera conduta – aqueles em que há consumação independe de resultado, sendo que nesse caso a conduta deve ser praticada com o fim específico de sonegar tributo.

Já no Código Penal, temos a figuras da apropriação indébita previdenciária, prevista no artigo 168-A, da sonegação de contribuição previdenciária, prevista no artigo 337-A, e o crime de descaminho, previsto no artigo 334, muito embora neste último há discussão relevante sobre se se trata de crime cuja natureza é unicamente tributária.

Em regra, os crimes tributários exigem uma conduta vinculada ao inadimplemento (ou a tentativa deste) para sua consumação, conduta que geralmente consiste em espécie de falsidade, de modo que o simples inadimplemento não teria relevância penal. Entretanto, existem duas exceções a esse respeito.

A primeira exceção encontra-se prevista no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990, que tipifica como crime a conduta de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. A segunda constitui no delito de apropriação indébita previdenciária, previsto no artigo 168-A do Código Penal, que consiste em “deixar de passar a previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”.

O delito previsto na Lei 8.137/1990 teve, inclusive, recente mudança de entendimento sobre sua aplicação no Supremo Tribunal Federal, no contexto do julgamento do RHC n. 163.334/SC. O entendimento superado defendia que o empresário que deixava de recolher o ICMS, mas confessava a dívida registrando o tributo em seus livros contábeis, não incidia no crime mencionado, uma vez que se tratava de mero inadimplemento. A partir do julgamento do STF, no entanto, mesmo aquele empresário que confessa a dívida pode incidir no crime previsto, caso deixe de recolher o tributo.

Nesse sentido, o não cumprimento de obrigações tributárias pode ensejar a prática de crimes tributários, mesmo que em decorrência da pandemia de coronavírus, o que deve ser observado pelos empresários de todo o país.

Entretanto, em certas hipóteses, a jurisprudência e doutrina brasileira preveem a não caracterização dos delitos acima descritos, mesmo na hipótese de inadimplemento do contribuinte.

A primeira hipótese se trata da atipicidade da conduta, pela qual, se o contribuinte comprova que não possuía o dinheiro necessário para recolher os valores devidos na data do pagamento, este sujeito não pratica os crimes acima delineados. Isso porque, tratando-se de crimes omissivos – crimes em que a conduta consiste em deixar de fazer algo – a impossibilidade de praticar a conduta gera sua atipicidade[2].

Entretanto, essa hipótese é raramente reconhecida pelos tribunais, uma vez que é entendimento consolidado na jurisprudência o fato de que, se há o recolhimento do tributo e se o agente deixa de repassá-lo às autoridades públicas na forma e no prazo legal, o agente não pode alegar a falta do dinheiro, uma vez que recolheu o tributo. De mesma forma, a jurisprudência entende que não se faz necessária a presença de dolo específico para a configuração do crime, de modo que a consumação destes ocorre com o não repasse do tributo recolhido na forma e no prazo legais.

A segunda tese, a qual é mais reconhecida nos tribunais, diz respeito sobre a inexigibilidade de conduta diversa, que incide sobre a análise da culpabilidade na estrutura do delito. Trata-se da hipótese na qual o contribuinte possui o dinheiro para o pagamento, mas opta por utilizar este dinheiro para o pagamento de dívida mais urgente ou necessária para a continuidade do funcionamento da empresa.

Nesse contexto, entende-se que a conduta do agente, que opta por agir de forma contrária à lei em razão das circunstâncias fáticas que o colocam nessa posição, não merece a censura jurídica, uma vez que estas circunstâncias tornam inviável que ele siga a lei.

Sobre o tema, a 5ª turma do Tribunal Regional Federal da 3ª região decidiu recentemente que “Como sabido, a inexigibilidade de conduta diversa exclui a culpabilidade nos casos em que o agente não tem condições efetivas de se comportar conforme a lei, de tal modo que sua ação não é considerada reprovável naquela situação concreta. Trata-se, pois, de causa excludente de cunho excepcional, na medida em que as hipóteses de exigibilidade de conduta diversa já se encontram tipificadas no Código. Assim, para o reconhecimento da exculpante em referência, faz-se imprescindível a prova inequívoca dos fatos – que hão de ser excepcionais, frise -se – que lhe dão suporte, não se afigurando suficientes, por razões de ordem intuitiva, meras declarações prestadas pelo réu e pelas testemunhas de defesa.” (TRF 3ª Região, 5ª Turma, ApCrim 0002501-36.2013.4.03.6115, Rel. Des. Fed. Paulo Fontes, j. 04/05/2020, e-DJF3 Judicial 1 DATA:29/05/2020).

Para a doutrina[3], para caracterizar a causa de exclusão da culpabilidade aqui tratada, são necessários alguns requisitos, tais como a existência de situação de conflito e a tentativa de obter solução adequada, o que, em situações normais, somente poderá ser demonstrado no curso do processo pela produção dos meios de prova admitidos.

De todo modo, “seja como for, o que não é razoável é equiparar-se a conduta daquele que deixa de pagar em razão de dificuldades financeiras que colocam em risco a continuidade da empresa, à daquele que deixa de pagar movido apenas pela ganância”[4].

Exatamente por isso é que se diz que a discussão do inadimplemento em tempos de crise pode gerar mais conflitos (inadimplementos) do que soluções.

De todo modo, se em tempos normais de atividade econômica o argumento da inexigibilidade já era admitido pelos tribunais, quando houver a análise de casos que versem sobre inadimplementos em tese criminosos ocorridos ao longo da crise e/ou imediatamente posteriores a ela, os julgadores deverão levar em conta que o cenário enfrentado pelo contribuinte não se cuidou de mera dificuldade financeira (o que muitas vezes é utilizado para afastar essa tese).

Por mais que a crise econômica aguda tenha sido sentida por uma grande parcela do empresariado, ela decorre de situação absolutamente excepcional, com drástica queda de faturamento e uma tentativa hercúlea de se manter estruturas mínimas para que fosse possível a retomada produtiva quando possível (funcionários, manutenção de maquinário e/ou de estabelecimentos, pagamento de crédito rotativo, entre outros).

É um conflito per se drástico, que os tribunais hão de ter sensibilidade quando vierem a analisar casos a esse respeito.

 

 

[1] Pesquisa pulso empresa: impacto da covid-19 nas empresas. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/28291-pesquisa-pulso-empresa-impacto-da-covid-19-nas-empresas.html?=&t=destaques.

[2] Sobre o tema, explica Juarez Cirino dos Santos que “Se o ordenamento jurídico impõe ao garante comportamento conforme ao dever jurídico, então a inexigibilidade exclui o próprio tipo de injusto”. SANTOS, Juarez Cirino Dos. Direito Penal: parte geral. – 8ª ed. – Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, pág. 226.

[3] JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general. 2ª ed. Madri: Marcial Pons, 1997.

[4] MACHADO, Hugo de Brito. Inexigibilidade de outra conduta nos crimes contra a ordem tributário.